Textos Cavalares - Chapéu
crônica de Eduardo Festugato
No inverno, às seis horas da tarde já começa escurecer. O sol do poente, qual alquimista medieval, transmuta o ouro da égua baia-ruana em cobre rutilante. E suas crinas, antes tão brancas, agora parecem labaredas.
Que misterioso pássaro será aquele que chama quem sabe quem, angustiado e aflito, do alto do plátano desfolhado, no cercado dos cabritos? Está só. Nessa época, agosto, não existem filhotes: nascem na primavera. Seu grande bico, aberto, fica delineado contra o poente agora sujo de sangue. Junto à cerca de tela, Agripina, a bela cabrita, presente do Gelson Cecconi, berra insistente, pedindo comida: "Chapeéu! Chapeéu!"
***
Depois de encher os comedouros dos cabritos e dos cavalos com pasto verde ceifado há pouco, ainda com o aroma do entardecer, e com o milho quebrado, misturado com farelo de trigo e sal, o "Má" se dispôs a soltar a Godolphina no potreiro. Não estava muito frio, nesse dia de agosto. A égua poderia, protegida pelas árvores, passar a noite ao relento, pastando a grama molhada do sereno que na madrugada se transforma em geada. (Que saudade do Sirilo! Nos entardeceres de Torres, há décadas, na hora da caipirinha ele gostava de cantar, em coro com os filhos: "Sereno da madrugada / não deixa meu bem dormir..." As boas recordações são o grande capital dos velhos: açúcar adoçando bocas amargas, sereno da madrugada refrescando almas ressequidas pelos sóis de mil saaras da vida...).
Colocado o buçal, o meu caseiro não resistiu:
– Vou dar uma voltinha, doutor.
Amarrou a extremidade do cabresto no ipsilon do buçal, imitando uma rédea e, num salto ágil de pessoa magra e jovem enforquilhou-se no lombo do animal, de em pêlo e sem o freio. Ajeitou o chapéu na testa e rumou direto à porteira.
Quanta alegria sentia o "Má"! E orgulho, também. Parecia um plebeu guindado sobre um trono. Esse é o grande mistério do cavalo: insufla no peito dos homens um sentimento de poder que transforma vassalos em reis. No alto da égua tostada, o "Má" já não é o mesmo!
Alguns minutos depois, ouço uma algazarra vinda da morada do Chico Barp: latidos de cachorros, nitridos de cavalo, ganidos e, de permeio, os gritos do "Má" ralhando com os cachorros. Logo, vejo-o entrar porteira a dentro, sem o chapéu, montado na Godolphina em galope desenfreado e berrando: "Oôa! Oôa, Dolfina!"
Ao gritar "Cuidado a cabeça!", mal e mal deu tempo para ele se deitar sobre o lombo do animal em disparada, ao passar debaixo do alpendre que há defronte as cocheiras. Se não fizesse assim, teria decepado a cabeça.
Ao chegar na minha frentre a égua pára, resfolegando, narinas dilatadas, suada, espuma nos encontros. Resfolegando e suado, mesmo no frio do inverno gaúcho, ouço o "Má" falando aos solavancos, assustado:
– Quase... quase que esta égua me mata!... Assustou-se com os cachorros... e disiparou como louca.
Para logo se consolar com incontido orgulho:
– Mas, não me derrubou!
Acaricia a cara da égua, acalmando-a, limpa a espuma dos encontros e, falando baixinho "Dolfina... Dolfina..." como se falasse a uma filha que acordou à noite, assustada por pesadelos, solta-a no potreiro onde passará a noite. Não há lugar para o rancor no coração do "Má".
***
No alto do plátano, desfolhado pelo inverno com seus frios e seus ventos, o pássaro misterioso e solitário continua chamando, aflito, quem sabe quem? Já não se enxerga mais seu bico, aberto, delineado contra o poente, agora encoberto pelas primeiras sombras da noite que vem chegando. Agripina, a bela cabrita, presente do Gelson Cecconi, comendo milho no coxo olha para os lados com gestos feminios e continua a berrar, agora menos insistentemente: "Chapeéu! Chapeéu!"
O "Má" pede licença e sai à procura do seu chapéu, caído com a correria. Seu negro vulto esguio de magro D. Quixote de a pé se dilui na escuridão da noite. Parece o compadre Benedito, do Aureliano, campeando o seu chapéu derrubado pelo vento...
"Na lagoa a lua cheia, clara e ancha,
está grudada lá no fundo. É tão bonito
o treme-treme da água clara, aqui e ali.
Até parece o chapéu claro do compadre Benedito
que um dia o vento tomou dele
e que o coitado ainda campeia
quando cruza por aqui..."
(Aureliano de Figueiredo Pinto)
Imagem: Eduardo Amorim